(O telefone toca em algum lugar numa madrugada cinza de setembro.)
- Alô? Alô?
(A voz ecoa e pauta o espaço à sua volta com o doce sabor da segurança e familiaridade. Ela deseja abrir os olhos, mas eles permanecem cerrados, desobedecendo à sua vontade. A dor aumenta, é agoniante.)
- Você pode me ouvir, Em? Em?
(Consegue sim, mas não tem como o esboçar, o seu corpo não lhe obedece. Não reage. Permite-se ficar no chão. Sente as lágrimas a escorrerem-se pelo rosto, copiosamente. Os seus sentidos estão adormecidos. A voz clama por ela incessantemente, algo no seu âmago cogita sobre a sua identidade. A pobre garota trava uma batalha consigo mesma para ganhar o direito à vida, à paz. A voz prossegue. Preenche o ar com notas quentes e enriquecidas, compondo o seu nome, esboçando chamamentos que se destinam a alertar-lhe. Não cessa, não desiste.)
- Em, sou eu. Fale comigo, por favor.
- É você, L?
(O rapaz solta a respiração do outro lado da linha e isso a envolve numa doce reminiscência. Concede-lhe uma sensação pura. Este calor lhe é familiar. Sabe quem ele é. Reconhece a sua voz. Contudo, permanece silenciosa, provavelmente assimilando o que ele dissera ou, pelo menos, deixando-lhe espaço para prosseguir.)
- Eu apenas... Nada.
- Por que depois de todo esse tempo?
- Eu estou com alguém.
(Ela permanece quieta, tentando pôr termo a sua respiração descontrolada. O seu corpo estava entorpecido e o seu semblante, imparcial. Reinava um silêncio sepulcral e incomodativo, entrecortado pelos ocasionais ruídos concebidos pelo rapaz. As lágrimas escorriam-lhe pela face e os seus braços envolviam o seu corpo frio, gélido. O sangue congela-se nas suas veias. Petrifica. Nota-se de que os seus medos voltaram e os seus receios nunca estiveram tão fortes. Vê o que não estava à espera. A desilusão espelhada no seu rosto. O seu olhar desolado. A incredulidade. A tristeza. Cortorcem as suas feições numa mistura absorta... Nunca antes tinha sentido-se assim. Abatida.)
- Ah. Então espera que eu dê suas felicitações?
(Amargura pauta em sua voz.)
- Eu estou com alguém e pela primeira vez me sinto suficiente. Eu não gosto da sensação. Ela faz todos os meus agrados, se esforça para ser tudo o que eu preciso, gosta de tudo o que eu gosto. Ela sou eu. Uma versão irritante de mim mesmo da qual não consigo me livrar. Você tá me ouvindo, Em?
- Quando estávamos juntos... Você se sentia inteiro?
- Não, mas você me completava.
- Quando eu te conheci você não era nada mais que um menino quebrado. A vida tinha te sacaneado de todos os modos possíveis e você só queria ser... Feliz. E toda essa sua garra de quem acredita que pode e vai ser feliz me assustou pra caramba. Eu era uma desiludida e cética que vivia nesse mundo cinza e você tinha toda essa essência degradê que eu me retraí. Eu me encolhi diante da possibilidade de uma mísera faísca de felicidade. Eu empatei todas as nossas chances porque não me achei digna de ser capaz de sentir tudo o que você despertava em mim. Então eu te soltei, eu te deixei livre pra seguir seu caminho porque estava tão convicta de que eu não seria capaz de te proporcionar essa sensação de leveza de que tanto falam. Eu espantei minha única possibilidade de me sentir (e sentir, pela primeira vez) viva. Eu acreditava que você ainda tinha algo de bom, não, eu não acreditava nisso, eu queria acreditar nisso. Eu desejava fervorosamente que você assim fosse. Que aquele bloco de gelo pudesse quebrar-se e revelar algo bom graças a você. Obriguei-me a raciocinar direito, a seguir a razão e a excluir e descartar o meu lado emocional.
(Ele permanece em silêncio matutando nas suas palavras. Ela tinha mais certeza do que falara do que ele tinha das suas deduções.)
- Eu acho que só precisava de um tempo pra fazer as coisas certas. Mas o tempo nunca se mostrou a nosso favor, né?
(As lágrimas escorrem pelo seu rosto, calcando os traços da sua face, como cascatas incessantes, enquanto ela insiste em desenterrar suas aflições. Não se adiantou muito mais enquanto rodava a cabeça e enxergava a confusão do exterior ausente, com uma desolação enorme. Estava outra vez atrás daquelas grades, naquele quarto melancólico e sujo. Sem ele. Ele a fizera regressar para aquele estado de abatimento, mesmo após tudo o que se havia passado e os destinos bifurcados que seguiram.
Do outro lado da linha telefônica, ele ergue-se do chão decrépito e afasta-se até ao colchão, encostando a cabeça à parede, tentando clarear as ideias. Continua a fixar o seu olhar nas luzes do exterior enquanto tentava achar uma maneira de esboçar os acontecimentos.)
- L?
- Eu não vou dizer "quando te conheci", porque não foi um acaso do destino. Eu quis te conhecer. Nada de questão de momento, onde duas pessoas simplesmente tropeçam pra vida um do outro. Eu te vi lá, parada, alheia do mundo, e soube no instante que pus meus olhos fixos em você que eu precisava saber quem você era. Eu passei alguns instantes te observando, apenas te encarando de um jeito nada assustador. De seguida moveu o olhar até mim e, pela primeira vez naquele dia, vi a sua expressão desfigurar-se num misto de confusão e divertimento. O olhar daquela figura encantadora manteve-se preso em mim, como se a minha transparência não fosse perceptível aos seus olhos. Te vi assim tão leve, tão linda, com um riso tão fácil, e percebi que eu estava perdido. Os acontecimentos estavam bem nítidos, porém o que se escondia para além deles era uma incógnita sem solução. Em. Quem era ela afinal? E só então me percebi de algo que estivera tão perto de mim, de algo que eu poderia agarrar apenas ao esticar o braço. Algo que mesmo em frente aos meus olhos, me tinha cegado. Não, Em, não sei ao certo o que aconteceu. Eu tinha essa sensação. Uma sensação que não sabia controlar, uma sensação que não sabia medir, nem guiar, mas ela existia, e fazia parte de mim. E de algum modo necessitava recorrer a ela, nem que isso me levasse todas as forças que o meu corpo desgastado ainda portava. As poucas forças que me restavam. Por outro lado, se nem eu próprio conseguia descodificar o que se passara, como esperava esboçá-lo para alguém? Era tudo tão confuso. Eu sei que você ainda me olha perplexa, aguardando que eu prossiga e que por uma vez as minhas palavras façam sentido. Eu próprio esperava que elas fizessem sentido, que nós fizéssemos sentido, que aquele sensação fizesse sentido, que eu fizesse algum sentido. Por segundos você pareceu tão genuína, as suas palavras tão fiáveis e o seu rosto tão afável. Aqueles olhos verdes cruzaram no meu campo de visão derrubando-me com uma força esmagadora. Eu próprio não sabia ao certo o que se havia passado momentos antes. Era tudo uma névoa difícil de atravessar.
(Tudo às suas voltas parece solidificar e o tempo pára. Perdem-se entre as linhas indefinidas do tempo e do espaço, da verdade e da ilusão. Não sabem onde se encontram. E numa fração de segundo, o silêncio impera e, sútil e unicamente, reina. Reina aos seus redores e nos seus âmagos.)
- Só que... Algo em mim não bate certo. Como um quebra-cabeça árduo de montar e que, para complicar tudo, está incompleto. Como se antes de nos faltar a nós essa informação em branco, faltasse a mim. Como se eu própria a buscasse. É confuso, L. Eu só estou... Cansada. Cansada de persistir em complicar o simples.
(Silêncio do outro lado da linha.)
- Eu não me apaixonei por você na primeira vez ou na segunda. Me peguei me apaixonando por você todas as vezes. Tudo em você chama por mim. Tua teimosia desenfreada, teus surtos, tuas piadas, tuas manias. Tudo, tudo.
- É porque eu sou sua, L. Eu sou sua a cada piada ofensiva, a cada surto desnecessário. Sou sua mordendo os lábios, sou sua rindo exageradamente. Tem mais você em cada estrofe das minhas músicas do que já teve qualquer homem que eu conheci. Você foi a única pessoa que eu permiti me ver em minha transparência.
(Mais silêncio.)
- Ei, Em?
- Sim?
- Ainda te amo.
- Eu também, L. Sempre, se lembra?
(O telefone fica mudo. A ligação cai.)