26 janeiro 2013

Desencontros.

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Você parece absorto demais em enrijecer sua pose de garoto autossuficiente. A cena me faz rir em deboche, porque apesar das maledicências e moléstias um contra o outro, eu sei te desfazer e te ler meticulosamente - todas as tuas entrelinhas, todos as tuas linhas tortas e mal redigidas. Sou eu que tenho a habilidade de montar o quebra-cabeça de mil peças que é você. Eu conheço todas as tuas caras e bocas, sei toda a analogia por trás do seu trincar da mandíbula quando o estresse atinge o auge, toda a síntese por trás de seu rolar de olhos, e aprecio todo o nervosismo camuflado em seu gesto singular de tamborilar os dedos. Você sempre foi hiperativo, e eu costumava brincar com o fato de sua mão cheia de espasmos nunca parar quieta. A idéia de que vivemos um tempo em que partilhávamos uma piada me agrada, e eu aprisiono a imagem do seu sorriso no antro do meu consciente. Dos seus diversos sorrisos, esse sempre fora o meu preferido por justamente ser aquele velado para mim. Você tem um sorriso pra ela também? Não responda, por favor, estou fora da razão, é apenas o álcool se manifestando. Você parece desconcertado, seu olhar desfocado falha em esconder a amargura que você sustenta quando me olha com saudade. Está aí mais uma vez o lance de eu-te-conheço-mais-do-que-a-mim-mesma-e-isso-é-assustador. Você empina o nariz tentando, de uma forma equívoca e falha, retomar o ar de arrogância e superioridade que costuma exalar. Mas não adianta. Eu te toco e você desfalece. E eu percebo que você me repele, me empurra, me abomina, apenas pelo fato de se sentir vulnerável com minha proximidade. Você era então um desacreditado e me conheceu. Maldita garota, você disse, com suas peculiaridades e manias, e seu jeito estranho e inapropriado de me tomar pela mão pra ver o mundo. O comentário me faz rir. Maldita garota que ousou amar alguém como você, logo você, tão ríspido e arrogante, tão entorpecido das dores do mundo, tão embevecido de si próprio. Você endireitava a pose e seguia seu teatro improvisado, tentando viver a vida na base de falas decoradas e um final já projetado e eu permanecia na retaguarda, imaginando o porquê do seu medo do desconhecido. Eu queria entender, te juro. Acho que foi assim que passei a te amar - tentando te entender. Foi te entendendo que eu enxerguei você em sua profundidade: um garoto quebrado. Quando te questionava sobre o que havia acontecido, você agarrava a nicotina e tragava ávido. Eu apenas sabia: a vida havia acontecido. E ela, tardiamente e inevitavelmente, acabou acontecendo pra mim. Por anos o ajudei a combater seus demônios internos e você acabou virando meu próprio demônio - te amei e esse amor me engoliu. Até o infortunado dia da minha desgraça: sua partida. Simples assim; virou pelos calcanhares e se foi com um muito-obrigado-quem-sabe-um-dia-eu-te-ligo. E você ligou. Como eu já suspeitava, a julgar pela sua instabilidade e incapacidade de encerramentos. Tinha receio de concluir suas artes, borrados e afins por não ter visão pra o recomeço, uma nova obra. Por isso sua carreira artística foi à ruína. Sua vida inteira foi feita de coisas incompletas porque você nunca conseguiu ser inteiro. Você nunca soube lidar com o nunca mais, o fim, a ruptura. Não sabia seguir adiante porque nunca soube pra onde ir - e daí se vai pra onde? -. Mas, ironicamente, você também nunca soube permanecer. Nossa história é marcada por partidas. Minhas, suas. A gente se afasta, some, se procura em outros corpos, conhece novos amores - você mais que eu (já que você me estragou pra essas coisas de romance) -, rompe relações - porque chega ao ponto de que a gente se toca que não somos nós dois e tudo parece errado - e, então, vamos pro bar mais próximo, temos uma conversa fiada com um estranho qualquer que nos dá seu número e a gente parte com a promessa barata de te-ligo-outro-dia-desses. A gente vira umas duas esquinas e tropeça de volta na vida um do outro. É sempre assim: a gente sempre encontra o caminho de volta um pro outro. Mas por alguma razão maior, após aquela noite, você não voltou. Você passou a me tratar como aquela camisa feia que guarda no fundo do armário e que eu tanto odeio. Você me trancou em você e resolveu me esquecer; comprar outra camisa mais bonita e cheirosa. Você repetia seu discurso ensaiado: não fomos, não éramos pra ser. Mas nada nunca vai ser tão certo quanto somos um pro outro. Eu até tentei seguir seu jogo, busquei pelas tantas almas corrompidas um ser adequado aos meus padrões e quase consegui ser feliz. O sujeito era legal, requintado, gostava de vinho - e eu sei que você odeia vinho, o que o fazia perfeito para mim. Perfeito demais. O cara me saiu muito educado, piegas e bem conservado. Ele me dava náuseas, eu me sentia em estado de dormência profunda com o pobre coitado. Passei o resto da minha vida não sentindo mais nada e, Deus, tudo o que eu queria era uma fricçãozinha contra minha pele pra me sentir viva. Então você me liga e me desperta pra vida novamente, eu esqueço toda essa pseudo felicidade e ligo o motor do carro - ele começa a rugir tomando vida, e eu no momento sou o carro e estou sendo acordada pra realidade. Eu pensei no que deveria dizer, em todas as palavras que pairaram diante a mim nesse meio tempo, mas você está se saindo bem com o silêncio. Então eu não sei o que aconteceu exatamente nesses anos em que eu ia e você vinha, ou você ia e eu esperava, mas aí fica a pergunta: a gente se perdeu ou nunca se achou?