22 abril 2013

Telefone.

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(O telefone toca em algum lugar numa madrugada cinza de setembro.)

- Alô? Alô?

(A voz ecoa e pauta o espaço à sua volta com o doce sabor da segurança e familiaridade. Ela deseja abrir os olhos, mas eles permanecem cerrados, desobedecendo à sua vontade. A dor aumenta, é agoniante.)

- Você pode me ouvir, Em? Em?

(Consegue sim, mas não tem como o esboçar, o seu corpo não lhe obedece. Não reage. Permite-se ficar no chão. Sente as lágrimas a escorrerem-se pelo rosto, copiosamente. Os seus sentidos estão adormecidos. A voz clama por ela incessantemente, algo no seu âmago cogita sobre a sua identidade. A pobre garota trava uma batalha consigo mesma para ganhar o direito à vida, à paz. A voz prossegue. Preenche o ar com notas quentes e enriquecidas, compondo o seu nome, esboçando chamamentos que se destinam a alertar-lhe. Não cessa, não desiste.)

- Em, sou eu. Fale comigo, por favor. 
- É você, L?

(O rapaz solta a respiração do outro lado da linha e isso a envolve numa doce reminiscência. Concede-lhe uma sensação pura. Este calor lhe é familiar. Sabe quem ele é. Reconhece a sua voz. Contudo, permanece silenciosa, provavelmente assimilando o que ele dissera ou, pelo menos, deixando-lhe espaço para prosseguir.)

- Eu apenas... Nada.
- Por que depois de todo esse tempo?
- Eu estou com alguém.

(Ela permanece quieta, tentando pôr termo a sua respiração descontrolada. O seu corpo estava entorpecido e o seu semblante, imparcial. Reinava um silêncio sepulcral e incomodativo, entrecortado pelos ocasionais ruídos concebidos pelo rapaz. As lágrimas escorriam-lhe pela face e os seus braços envolviam o seu corpo frio, gélido. O sangue congela-se nas suas veias. Petrifica. Nota-se de que os seus medos voltaram e os seus receios nunca estiveram tão fortes. Vê o que não estava à espera. A desilusão espelhada no seu rosto. O seu olhar desolado. A incredulidade. A tristeza. Cortorcem as suas feições numa mistura absorta... Nunca antes tinha sentido-se assim. Abatida.)

- Ah. Então espera que eu dê suas felicitações?  
(Amargura pauta em sua voz.)

- Eu estou com alguém e pela primeira vez me sinto suficiente. Eu não gosto da sensação. Ela faz todos os meus agrados, se esforça para ser tudo o que eu preciso, gosta de tudo o que eu gosto. Ela sou eu. Uma versão  irritante de mim mesmo da qual não consigo me livrar. Você tá me ouvindo, Em?
- Quando estávamos juntos... Você se sentia inteiro?
- Não, mas você me completava. 
- Quando eu te conheci você não era nada mais que um menino quebrado. A vida tinha te sacaneado de todos os modos possíveis e você só queria ser... Feliz. E toda essa sua garra de quem acredita que pode e vai ser feliz me assustou pra caramba. Eu era uma desiludida e cética que vivia nesse mundo cinza e você tinha toda essa essência degradê que eu me retraí. Eu me encolhi diante da possibilidade de uma mísera faísca de felicidade. Eu empatei todas as nossas chances porque não me achei digna de ser capaz de sentir tudo o que você despertava em mim. Então eu te soltei, eu te deixei livre pra seguir seu caminho porque estava tão convicta de que eu não seria capaz de te proporcionar essa sensação de leveza de que tanto falam. Eu espantei minha única possibilidade de me sentir (e sentir, pela primeira vez) viva. Eu acreditava que você ainda tinha algo de bom, não, eu não acreditava nisso, eu queria acreditar nisso. Eu desejava fervorosamente que você assim fosse. Que aquele bloco de gelo pudesse quebrar-se e revelar algo bom graças a você. Obriguei-me a raciocinar direito, a seguir a razão e a excluir e descartar o meu lado emocional. 

(Ele permanece em silêncio matutando nas suas palavras. Ela tinha mais certeza do que falara do que ele tinha das suas deduções.)

- Eu acho que só precisava de um tempo pra fazer as coisas certas. Mas o tempo nunca se mostrou a nosso favor, né?

(As lágrimas escorrem pelo seu rosto, calcando os traços da sua face, como cascatas incessantes, enquanto ela insiste em desenterrar suas aflições. Não se adiantou muito mais enquanto rodava a cabeça e enxergava a confusão do exterior ausente, com uma desolação enorme. Estava outra vez atrás daquelas grades, naquele quarto melancólico e sujo. Sem ele. Ele a fizera regressar para aquele estado de abatimento, mesmo após tudo o que se havia passado e os destinos bifurcados que seguiram.
Do outro lado da linha telefônica, ele ergue-se do chão decrépito e afasta-se até ao colchão, encostando a cabeça à parede, tentando clarear as ideias. Continua a fixar o seu olhar nas luzes do exterior enquanto tentava achar uma maneira de esboçar os acontecimentos.)

- L? 
- Eu não vou dizer "quando te conheci", porque não foi um acaso do destino. Eu quis te conhecer. Nada de questão de momento, onde duas pessoas simplesmente tropeçam pra vida um do outro. Eu te vi lá, parada, alheia do mundo, e soube no instante que pus meus olhos fixos em você que eu precisava saber quem você era. Eu passei alguns instantes te observando, apenas te encarando de um jeito nada assustador. De seguida moveu o olhar até mim e, pela primeira vez naquele dia, vi a sua expressão desfigurar-se num misto de confusão e divertimento. O olhar daquela figura encantadora manteve-se preso em mim, como se a minha transparência não fosse perceptível aos seus olhos. Te vi assim tão leve, tão linda, com um riso tão fácil, e percebi que eu estava perdido. Os acontecimentos estavam bem nítidos, porém o que se escondia para além deles era uma incógnita sem solução. Em. Quem era ela afinal? E só então me percebi de algo que estivera tão perto de mim, de algo que eu poderia agarrar apenas ao esticar o braço. Algo que mesmo em frente aos meus olhos, me tinha cegado. Não, Em, não sei ao certo o que aconteceu. Eu tinha essa sensação. Uma sensação que não sabia controlar, uma sensação que não sabia medir, nem guiar, mas ela existia, e fazia parte de mim. E de algum modo necessitava recorrer a ela, nem que isso me levasse todas as forças que o meu corpo desgastado ainda portava. As poucas forças que me restavam. Por outro lado, se nem eu próprio conseguia descodificar o que se passara, como esperava esboçá-lo para alguém? Era tudo tão confuso. Eu sei que você ainda me olha perplexa, aguardando que eu prossiga e que por uma vez as minhas palavras façam sentido. Eu próprio esperava que elas fizessem sentido, que nós fizéssemos sentido, que aquele sensação fizesse sentido, que eu fizesse algum sentido. Por segundos você pareceu tão genuína, as suas palavras tão fiáveis e o seu rosto tão afável. Aqueles olhos verdes cruzaram no meu campo de visão derrubando-me com uma força esmagadora. Eu próprio não sabia ao certo o que se havia passado momentos antes. Era tudo uma névoa difícil de atravessar

(Tudo às suas voltas parece solidificar e o tempo pára. Perdem-se entre as linhas indefinidas do tempo e do espaço, da verdade e da ilusão. Não sabem onde se encontram. E numa fração de segundo, o silêncio impera e, sútil e unicamente, reina. Reina aos seus redores e nos seus âmagos.)

Só que... Algo em mim não bate certo. Como um quebra-cabeça árduo de montar e que, para complicar tudo, está incompleto. Como se antes de nos faltar a nós essa informação em branco, faltasse a mim. Como se eu própria a buscasse. É confuso, L. Eu só estou... Cansada. Cansada de persistir em complicar o simples.

(Silêncio do outro lado da linha.)

- Eu não me apaixonei por você na primeira vez ou na segunda. Me peguei me apaixonando por você todas as vezes. Tudo em você chama por mim. Tua teimosia desenfreada, teus surtos, tuas piadas, tuas manias. Tudo, tudo. 
- É porque eu sou sua, L. Eu sou sua a cada piada ofensiva, a cada surto desnecessário. Sou sua mordendo os lábios, sou sua rindo exageradamente. Tem mais você em cada estrofe das minhas músicas do que já teve qualquer homem que eu conheci. Você foi a única pessoa que eu permiti me ver em minha transparência.

(Mais silêncio.)
- Ei, Em?
- Sim?
- Ainda te amo.
- Eu também, L. Sempre, se lembra?

(O telefone fica mudo. A ligação cai.)


26 janeiro 2013

Desencontros.

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Você parece absorto demais em enrijecer sua pose de garoto autossuficiente. A cena me faz rir em deboche, porque apesar das maledicências e moléstias um contra o outro, eu sei te desfazer e te ler meticulosamente - todas as tuas entrelinhas, todos as tuas linhas tortas e mal redigidas. Sou eu que tenho a habilidade de montar o quebra-cabeça de mil peças que é você. Eu conheço todas as tuas caras e bocas, sei toda a analogia por trás do seu trincar da mandíbula quando o estresse atinge o auge, toda a síntese por trás de seu rolar de olhos, e aprecio todo o nervosismo camuflado em seu gesto singular de tamborilar os dedos. Você sempre foi hiperativo, e eu costumava brincar com o fato de sua mão cheia de espasmos nunca parar quieta. A idéia de que vivemos um tempo em que partilhávamos uma piada me agrada, e eu aprisiono a imagem do seu sorriso no antro do meu consciente. Dos seus diversos sorrisos, esse sempre fora o meu preferido por justamente ser aquele velado para mim. Você tem um sorriso pra ela também? Não responda, por favor, estou fora da razão, é apenas o álcool se manifestando. Você parece desconcertado, seu olhar desfocado falha em esconder a amargura que você sustenta quando me olha com saudade. Está aí mais uma vez o lance de eu-te-conheço-mais-do-que-a-mim-mesma-e-isso-é-assustador. Você empina o nariz tentando, de uma forma equívoca e falha, retomar o ar de arrogância e superioridade que costuma exalar. Mas não adianta. Eu te toco e você desfalece. E eu percebo que você me repele, me empurra, me abomina, apenas pelo fato de se sentir vulnerável com minha proximidade. Você era então um desacreditado e me conheceu. Maldita garota, você disse, com suas peculiaridades e manias, e seu jeito estranho e inapropriado de me tomar pela mão pra ver o mundo. O comentário me faz rir. Maldita garota que ousou amar alguém como você, logo você, tão ríspido e arrogante, tão entorpecido das dores do mundo, tão embevecido de si próprio. Você endireitava a pose e seguia seu teatro improvisado, tentando viver a vida na base de falas decoradas e um final já projetado e eu permanecia na retaguarda, imaginando o porquê do seu medo do desconhecido. Eu queria entender, te juro. Acho que foi assim que passei a te amar - tentando te entender. Foi te entendendo que eu enxerguei você em sua profundidade: um garoto quebrado. Quando te questionava sobre o que havia acontecido, você agarrava a nicotina e tragava ávido. Eu apenas sabia: a vida havia acontecido. E ela, tardiamente e inevitavelmente, acabou acontecendo pra mim. Por anos o ajudei a combater seus demônios internos e você acabou virando meu próprio demônio - te amei e esse amor me engoliu. Até o infortunado dia da minha desgraça: sua partida. Simples assim; virou pelos calcanhares e se foi com um muito-obrigado-quem-sabe-um-dia-eu-te-ligo. E você ligou. Como eu já suspeitava, a julgar pela sua instabilidade e incapacidade de encerramentos. Tinha receio de concluir suas artes, borrados e afins por não ter visão pra o recomeço, uma nova obra. Por isso sua carreira artística foi à ruína. Sua vida inteira foi feita de coisas incompletas porque você nunca conseguiu ser inteiro. Você nunca soube lidar com o nunca mais, o fim, a ruptura. Não sabia seguir adiante porque nunca soube pra onde ir - e daí se vai pra onde? -. Mas, ironicamente, você também nunca soube permanecer. Nossa história é marcada por partidas. Minhas, suas. A gente se afasta, some, se procura em outros corpos, conhece novos amores - você mais que eu (já que você me estragou pra essas coisas de romance) -, rompe relações - porque chega ao ponto de que a gente se toca que não somos nós dois e tudo parece errado - e, então, vamos pro bar mais próximo, temos uma conversa fiada com um estranho qualquer que nos dá seu número e a gente parte com a promessa barata de te-ligo-outro-dia-desses. A gente vira umas duas esquinas e tropeça de volta na vida um do outro. É sempre assim: a gente sempre encontra o caminho de volta um pro outro. Mas por alguma razão maior, após aquela noite, você não voltou. Você passou a me tratar como aquela camisa feia que guarda no fundo do armário e que eu tanto odeio. Você me trancou em você e resolveu me esquecer; comprar outra camisa mais bonita e cheirosa. Você repetia seu discurso ensaiado: não fomos, não éramos pra ser. Mas nada nunca vai ser tão certo quanto somos um pro outro. Eu até tentei seguir seu jogo, busquei pelas tantas almas corrompidas um ser adequado aos meus padrões e quase consegui ser feliz. O sujeito era legal, requintado, gostava de vinho - e eu sei que você odeia vinho, o que o fazia perfeito para mim. Perfeito demais. O cara me saiu muito educado, piegas e bem conservado. Ele me dava náuseas, eu me sentia em estado de dormência profunda com o pobre coitado. Passei o resto da minha vida não sentindo mais nada e, Deus, tudo o que eu queria era uma fricçãozinha contra minha pele pra me sentir viva. Então você me liga e me desperta pra vida novamente, eu esqueço toda essa pseudo felicidade e ligo o motor do carro - ele começa a rugir tomando vida, e eu no momento sou o carro e estou sendo acordada pra realidade. Eu pensei no que deveria dizer, em todas as palavras que pairaram diante a mim nesse meio tempo, mas você está se saindo bem com o silêncio. Então eu não sei o que aconteceu exatamente nesses anos em que eu ia e você vinha, ou você ia e eu esperava, mas aí fica a pergunta: a gente se perdeu ou nunca se achou?